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    sexta-feira, 31 de julho de 2020

    Tempos atípicos. [E, de caminho, um pequeno vídeo com um galo e vários touros à laia de metáfora]



    Os dias vão correndo de forma atípica. Passam-se coisas que eu, por mil anos que viva, não consigo perceber. Se uma empresa está a passar por dificuldades e desencadeia uma série de acções supostamente para encontrar soluções para os seus trabalhadores, porque é que tudo o que faz é nebuloso, evasivo, retardador, inexplicável? Porque é que suscitam reuniões, enviam documentação, pedem celeridade e, em actos, embrulham, atrasam, enevoam? Estarão aqueles postos de trabalho deveras em jogo? Ou, se estão, saberão essas pessoas que quem diz querer encontrar uma solução está na prática a dificultá-la? 

    E porque acontecem coisas assim? Porque há coisas assim?

    Dizem-me outras pessoas, avisando-me que estão a falar off the record, que aquilo ali é de família, que é gente conhecida nos mentideros por ser gente de esquemas, que eu tenha algum cuidado. Impaciento-me. Não quero saber de mentideros nem de bastidores nem gosto de perder tempo com coisas que não percebo e que não dão em nada.

    Ainda há bocado, estava a jantar, recebi uma mensagem. Lembravam-me a urgência do tema e que tentasse que a próxima reunião seja conclusiva. Ainda mais incomodada fiquei. Sinto-me rodeada de gente que diz que quer fazer uma coisa e, com os melhores modos, com as palavras mais acertadas, diz coisas que não significam nada nem correspondem aos actos. Por dentro, digo: tirem-me deste filme. É como se uns bombeiros me dissessem: há aqui um fogo, há gente em risco, não conseguimos salvá-los, venham ajudar-nos. E uma pessoa chega lá, vê os bombeiros com ar de quem precisa de ajuda, em roda, como se a proteger os indefesos no meio, os bombeiros dizendo-se muito colaborantes no sentido de arranjar uma solução para os pobres coitados que estão no interior do círculo mas, estranhamente, com as mangueiras apontadas para fora. As bocas e as caras dizem uma coisa, as mãos fazem o oposto. Queremos aproximar-nos para resgatar os que supostamente estão em risco mas somos impedidos, afastados, pelo jacto das mangueiras dos supostos bombeiros. Mas sempre afáveis, educados. Gente poderosa que, mesmo quando supostamente apeada, usa o seu poder para manipular e para tornar mais vulneráveis os mais frágeis.

    Ou será tudo uma estranha farsa?

    Quando acabei de jantar, peguei no prato onde tinha juntado os ossos sobrantes e fui lá fora, lá abaixo, longe, debaixo de um arbusto, despejar esses restos para os animais. De caminho, parei na figueira grande e comi a sobremesa. Os figos começam a adoçar, a amolecer de ternura, carnudos e gulosos. Adocei-me por dentro. 

    Chegada a casa, estava a pôr o prato no lava-louça, senti uma coisa a fazer-me uma cócega pelo ombro abaixo. Olhei e, num relance, vi um bicho escuro e grande. Dei um valente safanão e, no acto, dei um grito e parti o prato em vários bocados. O meu marido acorreu, surpreendido. Pareceu-lhe que me tinha dado uma fúria e, num rompante, tinha dado um grito e atirado com o prato. Expliquei e mostrei-lhe a causa do sucedido. Não sei que bicho seria. Talvez uma cigarra. Não era preto, tinha manchinhas. E lá se foi mais um prato. Há umas semanas foi a minha filha que, sem as lentes, calculou mal a distância ao pegar num prato para o lavar ou lá o que foi, parece que roçou noutro e, de uma vez, partiu dois. Os pratos lisos e grandes que prefiro vão levando sumiço. Já não gosto de usar pratos como eram os de dantes, mais pequenos. Claro que isto não tem nada de especial e muito menos tem a ver com o tema de cima mas aconteceu no mesmo dia e a minha vida é uma sucessão de coisas que nada têm a ver umas com as outras, de importâncias díspares e globalmente irrelevantes.

    Também me aborrece o facto de, logo agora que os figos estão a ficar maduros, é que eu não vou estar por lá para dar conta deles. Bolas. Contrariedade e das grandes. Tento encontrar maneira de a ultrapassar e não vejo como. Pelo menos, de momento.

    E há outras coisas que agora também não me dão muito jeito: excesso de trabalho, profissional e sobretudo pessoal (sendo certo que o pessoal é, em grande medida, procurado por mim), excesso de calor, excesso de falta de férias, excesso de falta de paciência para quem me faz perder tempo. E até falta de paciência para a NOS que me obriga a perder tempo em infindáveis telefonemas em que me deixam pendurada a ouvir música, em que me fazem repetir dúzias de vezes o número de contribuinte, o nome, o motivo, e em que nunca, nunca, sabem de nada do que eu disse aos antecedentes nem resolvem porcaria nenhuma.

    E não se salva nada? Ora essa, claro que salva. Por exemplo, um telefonema. Conversa longa. A certa altura, aquele homem gigante (e, por sinal, talvez o mais lindo da actualidade) desaba em lágrimas ao saber aquilo que eu tinha escondido e ao recordar as minhas palavras e o meu apoio quando lhe aconteceu a ele o mesmo. Depois, porque também me emocionei, o silêncio. E outras coisas. Pequenas coisas, coisas valiosas. Cores límpidas, cores quentes, cores que desenham pontes, vislumbres que enunciam o que, sendo invisível, brilha como uma luz que traça o caminho para a perfeição, palavras depuradas, sorrisos que se adivinham, proximidades indestrutíveis, alegrias que surgem de dentro de nós, a vertigem das memórias, sonhos, a paz do entardecer, a respiração dos lobos que trazem a noite presa aos seus olhos transparentes. Coisas assim.

    Tempos atípicos estes. Tempos atípicos.

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    E, de repente, agora que estava a dar o expediente por encerrado, levantou-se, de dentro de mim, uma vontade de dizer aos que se julgam com o rei na barriga e mais espertos que os outros que, calminha aí, nem sempre o vento sopra a seu favor. Portanto, cuidadinho com os pequenos e insignificantes.


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    Pinturas obviamente de David Hockney ao som de Origins de Max Richter
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    E um dia feliz a todos!

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