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    sábado, 8 de agosto de 2020

    VÊNUS

    Aos setenta anos, Ademar tinha no sexo a sua derradeira aventura em vida.


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    O desembarque da estação do metrô na rua Uruguaiana jorrava gente como a foz de um rio caudaloso. Ademar se espremia entre os corpos afobados, tentando vencer aquela selva que se precipitava sobre as calçadas em busca de um destino, o nosso abismo comum. Não era fácil identificá-lo naquela correnteza humana, não possuía a nobreza sóbria dos negros, nem a liberdade de um índio e muito menos a frivolidade quimérica do imaginário ariano. Tremulava entre os três, mediando as matizes numa nuance que conhecemos como povo.
    Aposentado, a maior aventura da sua rotina de septuagenário se resumia ao sexo, insistente vestígio da juventude. A agonia do desejo não correspondia mais à potência do corpo. De hábitos sedentários, diabético e barrigudo, a ereção tornara-se um mito. Sua libido consolava-se com o mérito da criatividade. Não era pouco. Viúvo, habituara-se a frequentar os bordéis do Centro do Rio quando sentia a necessidade de comungar sua pele com as texturas femininas. Conhecido em alguns cabarés, ainda o deslumbrava aquele ambiente de lascívia onde o imoral, o promíscuo e o profano surgiam como virtudes. Considerava-se um libertino.
    De súbito, o fluxo dos seus pensamentos foi interrompido por um sujeito baixinho que vociferava próximo ao seu ouvido.
    – Pramil, doutor. Olha o pramil. Com pramil o doutor volta a ser garanhão.
    A criatura falava para o mundo escutar, como se soubesse para onde o nosso protagonista estava indo. Que desaforo – pensou Ademar.
    – Meu caro, por favor, abaixe o tom. Estou indo à missa.
    Constrangido, o baixinho estancou o passo. Ademar pode continuar caminhando em harmonia com o silêncio interior. O lupanar da vez ficava na Praça Monte Castelo, um ponto de quietude ao lado da Igreja Nossa Senhora do Rosário. Sim, leitor incrédulo, o pecado afronta a sacra fé sem o menor constrangimento. Um rapaz o reconhece e faz questão de abrir a porta da boate antes que ele entre.
    – Boa tarde, seu Ademar. O rei das novinhas.
    Ademar acena simpático e despeja na mão do rapaz um agrado de 5 reais. O jovem abre um sorriso de rasgar as orelhas. Ah, filantropia! Com tão pouco alivia a mão necessitada e faz do benemérito um Gandhi entre os sem-teto. O que para pobre é caixinha, para o filantropo é recompensa.
    A fumaça no ar, a profusão de perfumes, penumbra, vultos curvilíneos, as vozes que se cruzam pelas frestas da música nas alturas, a alegria dos que se entregarão ao desfrute carnal. A felicidade soava mais intensa no inferninho. Doce luxúria – Ademar sussurrava para dentro. Um abraço repentino, por trás, quase o fez perder o equilíbrio. Uma ninfa ruiva, de pele alvíssima, brilhando num revestimento de purpurina, beija sua nuca.
    – Meu sugar daddy mais fofo – exalta a mulher.
    Surpreendido, Ademar se vira, agora banhado de pontos prateados, sentindo-se um arcaico adereço carnavalesco num desfile para gringo ver. Sua primeira reflexão foi se perguntar como voltaria para o Estácio de metrô reluzindo purpurina em pleno outono carioca. Esqueceu tudo quando Martinha violentou sua boca com um beijo de arrancar língua. Martinha sempre vulcânica e escultural. Conhecendo a liturgia, Ademar pega duas cervejas e senta-se com a garota num canto reservado aos amassos preliminares.
    – Ai, Adê (assim Martinha o chamava), esses teus cabelos brancos são um charme – Ademar odiava os sinais da velhice e não se comovia com elogios que amenizassem a degradação física.
    Beberam e conversaram por mais de meia hora. Martinha enaltecia Ademar, Ademar elogiava Martinha e ambos demonstravam confiantes que o amor de bordel é uma competição ardilosa entre trapaceiros. Os assuntos foram a escassez, a afasia instalou-se e alçou os olhares interrogativos que determinaram o convite à alcova. Ademar e Martinha escalaram as escadas até à câmara comprida e ladeada por portas que abrigam pequenos universos de fantasias.
    O quarto pequeno iluminado por uma precária lâmpada azul, a cama estreita forrada por um lençol puído, o frio desproporcional do ar-condicionado. Ademar tinha na alcova o seu segundo lar. Despiu-se enquanto Martinha tomava banho. O espelho na parede lateral denunciava o descompasso entre a imagem carcomida do idoso e a mente que teimou em manter-se na puberdade. A nívea concubina ressurge envolta numa toalha rosa que logo deixa cair. Ademar não percebe seu queixo amolecendo diante da visão desnuda que se move em ondulações de enguia.
    – Vênus... – escapa dos lábios do velho.
    Martinha mergulha sobre ele sabendo que não verá nenhuma resposta daquele membro combalido. Ademar se desvencilha, deita a garota e explora o corpo da jovem com a boca. Naquele momento, emergia o entusiasmo de um bandeirante em busca de esmeraldas, mas nada que ultrapassasse a fronteira das contrações químicas do cérebro. Encerrada a cerimônia, pede que a mulher se levante e a orienta em poses sensuais ao mesmo tempo em que fotografa com o celular. Um roteiro que se repetia e para o qual Martinha era a atriz mais bem ensaiada. Terminou as fotos e lançou um olhar apalermado para o corpo da modelo.
    – Vênus – repetiu.
    Beijaram-se mais um pouco antes da despedida. Ao sair, Ademar puxa uma nota de 50 reais e entrega a Martinha, esta lhe devolve o mimo com outro beijo de uma língua que ameaça estuprar sua traqueia. Diz que Martinha é linda e Martinha retruca dizendo que ele é um homem maravilhoso. Às vezes, o sexo é um fugidio enlace de mentiras.
    Ademar veste a roupa, desce a escadaria, atravessa a pista da boate e ganha a porta de saída. O rapaz da recepção o abraça e o intima a voltar na próxima semana. Finalmente, alcança a rua.
    O céu alaranjado do fim de tarde irradiava uma luz violeta que recobria o cenário de prédios e sobrados. A brisa morna trazia o aroma da maresia que soprava no porto, pessoas ligeiras se cruzavam como fantasmas ansiosos por retornarem para casa. Uma melodia anacrônica transpirava de algum ponto do camelódromo que fervilhava no entorno: “Aventura”, na voz do Eduardo Dusek. Interrompe os passos, para num botequim, pede uma dose de cachaça, dá o primeiro gole e é possuído pela euforia indomável. Respira fundo. Com o rosto cintilante de purpurina, sorri. O orgasmo da alma anestesia os sentidos e ergue a noite estrelada.

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