Saber distinguir e conviver com o(s) seu(s) medos é importante para se conhecer melhor e ter uma vida mais criativa e transformadora – mesmo que isso o amedronte de vez em quando
Toda vez que estou diante da porta, respiro fundo antes de apertar o botão. Meto o dedo bem rápido, totalmente a contragosto, como uma criança que tem que engolir a última garfada de arroz com feijão, e fico olhando, pelo pequeno visor luminoso, os números dos andares mudarem rápido enquanto aquela caixa retangular se aproxima de mim. A tensão vai aumentando, até que ela chega e eu preciso entrar. Sempre que há alguém, fico mais tranquilo. Quando está vazio, meus batimentos cardíacos gritam. Entro e permaneço imóvel até que aquela espécie de antessala do purgatório (disposta a sempre me levar ao inferno) chegue ao meu andar de destino. No curto trajeto, apuro os ouvidos para tentar perceber qualquer ruído diferente.
Quando vejo que é o Lairton que está na portaria, respiro mais aliviado. Eu sei que ele ignora os procedimentos de segurança passados pelo pessoal da assistência técnica e endossados pela síndica. Se a máquina parar, ele me tira dali. Eu sei, ele prometeu: conversamos inúmeras vezes sobre isso. Dou bom-dia, ele vem com o jornal, e eu levo embaixo do braço, apertando bem forte, apreensivo, antes de subir – eu sempre o uso para isso, afinal é difícil encarar 12 andares acima.
Descer, quase sempre é nas pernas, porque daí todo santo ajuda. Pra subir, quem tem que me amparar é meu anjo da guarda. Ele bem sabe do pânico que eu tenho de ficar preso, apelo para ele todos os dias. E, entre subidas – mais frequentemente – e descidas, encaro o elevador apesar da minha claustrofobia, ou a aversão ao confinamento, de ficar preso em um espaço pequeno e limitado.
Entendendo o medo
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Medo é ruim e ninguém gosta de sentir, mas é um instinto que se instaurou no nosso cérebro há milhares de anos e, por isso, é algo com que temos que aprender a conviver. A ciência comportamental determina que esse sentimento é uma reação instintiva de proteção frente a uma ameaça. Ele pode nos levar a reagir de maneiras muito diversas. Tanto construtivas quanto destrutivas.
A partir dele, podemos ter coragem para atacar ou fugir. Proteger ou destruir. “O medo existe para nos dar conforto frente a um mundo que pode ter características ameaçadoras”, afirma Luís Fernando Tófoli, professor de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp. Mais do que um instinto, nos seres humanos o medo estabeleceu reações de comportamentos mais complexas, a partir da nossa capacidade de imaginar o futuro, de simular acontecimentos e reconhecer a finitude da existência. Demos, nas nossas mentes, um peso maior a ele.
“O medo, que é um sentimento primal, ganhou valores simbólicos e explicações. Ele pode ser, portanto, um motor poderoso para nosso autoconhecimento”, defende Tófoli. “Primeiro, porque nos obriga a olhar o desagradável, a buscar cuidados”, diz. Não é à toa que o transtorno que mais leva pessoas ao atendimento médico é justamente o do pânico, a manifestação mais aguda e intensa de um medo.
“A segunda razão é que a forma como cada um vivencia esse sentimento diz muito de sua própria história de vida, e dos pontos que precisa buscar transformar e viver melhor. Nesse sentido, reconhecer a existência dessas fobias e ter a chance de olhá-las de frente pode ser o primeiro passo para transformá-las em algo que se pode superar, ou simplesmente conviver.”
Você precisa ter medo
De acordo com Tófoli, a fobia que cada um desenvolve traduz parte do seu universo interno. Medos não caem do céu aleatoriamente e escolhem um ou outro para se instalar. O pavor de cachorro, por exemplo, pode surgir por diversas razões, desde associações com eventos ligados à vida da pessoa (o ataque por um cão bravo na infância) até enigmas mais profundos e inconscientes, desvendados apenas com uma psicoterapia. “Porém, o principal é cada um se perguntar: ‘Por que eu tenho medo disso? Por que essa coisa me paralisa?’ Essas questões podem ser o ponto de partida para você se entender melhor”, afirma o especialista.
A escritora americana Elizabeth Gilbert, famosa pela jornada que a levou a escrever o livro Comer, Rezar, Amar (Objetiva), foi uma criança muito medrosa, apavorada. Tinha todos os receios comuns dessa fase da vida (de escuro, de nadar no fundão da piscina, de pessoas desconhecidas na rua) e mais outros que foi colecionando no decorrer dos primeiros anos. “Eu era uma criatura sensível e facilmente traumatizável, me debulhava em lágrimas com qualquer perturbação em meu campo de força”, relata em sua obra mais recente Grande Magia: Vida Criativa sem Medo (Objetiva), na qual relata histórias de pessoas que decidiram enfrentar seus demônios internos em prol de uma vida mais criativa.
Elizabeth era impulsionada pela mãe a se portar diante dos temores. “Ela tinha um plano para acabar com meu medo que era quase cômico de tão simples: sempre me forçava a fazer o que eu mais temia. Por mais que no princípio tenha relutado todas as vezes, chorando e tremendo, na adolescência percebi que aquela batalha que eu estava travando era muito estranha, a de defender minha própria fraqueza”, conta.
Evoluir com coragem
Foi quando ela finalmente percebeu que seu medo instaurado era muito chato e não a estava levando a lugar algum. “Percebi que meu medo não tinha nenhuma variedade, nenhuma profundidade, nenhuma substância. Era uma música de uma nota só, me dizendo sempre: ‘Pare!’”, diz. Como, aliás, é o medo de todo mundo. O volume muda, o ritmo também, mas a música sempre soa igual. “Você não ganha nenhum crédito especial por saber como ter medo do desconhecido.”
Ela se deu conta de que era preciso ir além de seus sentimentos aterrorizantes. E que a coragem seria o caminho para mudar, evoluir, diferenciar-se. “Coragem significa fazer algo que nos causa medo. Não é ser destemido, que é não saber o que a palavra medo significa: é ir lá e fazer apesar dele”, diz a escritora.
Elizabeth Gilbert ouviu muitas histórias para compor sua obra, de amigas próximas a desconhecidos, e chegou à conclusão que o temor precisa ter espaço na nossa vida caso queiramos ter uma existência mais criativa. No senso comum, criatividade e medo seriam tão antagônicos quanto os jedi e os sith. Afinal, a criatividade reside na área dos resultados incertos, algo inaceitável para o medo.
Medo e criatividade
Mas a verdade é que, toda vez que a criatividade está agindo na nossa mente, ela se faz perceptível demais e acaba por despertar o temor. “O medo e a criatividade dividiram o mesmo útero, nasceram ao mesmo tempo. É por isso que precisamos ser cuidadosos em relação à maneira como lidamos com o medo, pois, quando uma pessoa tenta aniquilá-lo, com frequência acaba assassinando a criatividade por tabela”, diz Gilbert. “Eu permito que meu medo viva, respire e estique as pernas confortavelmente. Tenho a impressão de que quanto menos eu brigo com meu medo, menos ele contra-ataca. Quando consigo relaxar, o medo relaxa também”, explica a autora.
A saída é, então, não deixar o pavor comandar. “A capacidade de uma pessoa lidar com seus medos está diretamente relacionada com o seu campo de memórias positivas ou traumáticas. Nossas memórias são aprendizados. Eles podem representar recursos ou limitações, e nem sempre iremos nos lembrar da causa original de nossos medos paralisantes”, afirma a psicóloga Bel Cesar.
Entender onde eles foram gerados é um passo para conviver melhor com cada um deles. Porque o temor é, muitas vezes, inconsciente, e se forma na nossa memória implícita, se estabelecendo sem que a mente tenha conseguido um registro simbólico dele. “Isso pode gerar alguns traumas futuros, que é um tipo de medo paralisante, uma resposta biológica de defesa incompleta, na qual o sistema nervoso está em alta ativação e a pessoa, em sua tentativa de se defender de uma ameaça em situação de desamparo, se congela”, explica.
Sem paralisar
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Em alguns casos, como na síndrome do pânico e de ansiedade generalizada, o homem ou a mulher se veem incapazes de agir e precisam de ajuda médica. Mas nem todo medo é patológico – pelo contrário –, e criar processos de conscientização das nossas tensões e descargas físicas na medida em que eles surgem pode ajudar a relativizá-los. Como insistia a mãe da escritora Elizabeth Gilbert: enfrentar aos poucos o que nos aflige pode mostrar que a sombra na parede do quarto quase nunca é um bicho-papão.
A questão é que vivemos em uma época na qual cultivamos um leque maior de medos do que há 100 anos. “E muitos deles são, certamente, irrelevantes ou fictícios”, afirma o professor Luís Fernando Tófoli. Para ele, nunca as pessoas se cercaram de tantas formas de contornar ou até eliminar riscos potenciais como hoje: compras em shopping centers, moradias em condomínios fechados, previdência privada, sabonetes bactericidas…
“Até o futuro dos filhos deve ser planejado de uma forma milimétrica a evitar que passem por qualquer situação de risco ou infortúnio. Já temos uma geração criada dessa forma, com uma aversão delirante a tudo que possa trazer qualquer vestígio de medo. Tenho sérias dúvidas se essa é a melhor forma de lidarmos com os problemas do mundo real.”Difícil querer planejar tão direitinho o futuro nessa era em que vivemos, de tantas instabilidades.
Medo coletivo
Uma pesquisa feita pelo Pew Research Center em 40 países concluiu, aliás, que as mudanças climáticas, o desequilíbrio econômico e o terrorismo jihadista são os medos globais que mais preocupam as pessoas hoje. A ideia da pesquisa era medir as percepções de cada país frente aos desafios internacionais. Segundo os dados, 46% da população do mundo está muito preocupada com a mudança do clima.
No Brasil, os muito preocupados com o tema são 75% dos que participaram do estudo – que envolveu 45 mil pessoas. Esse é o item em primeiro lugar no ranking de preocupações no país. O Estado Islâmico é o maior temor dos países europeus, Estados Unidos, Canadá e Austrália. A Rússia e os países do Leste Europeu temem mais os rumos incertos da economia. Todo mundo com medo de um futuro que não sabemos como será. E, por isso, nos tira tanto o sono.
Mas os nossos principais temores são os intrínsecos, aqueles que dependem mais de nós mesmos do que do clima externo, de um arroubo na economia ou como os exércitos de jihadistas estão se organizando para atingir seus objetivos. Em um estudo informal, o pesquisador americano Jonathan Alpert sempre coloca seus pacientes, amigos e colegas à prova. “Faço a seguinte pergunta a eles: ‘Imagine sua vida daqui a um ano. Se ela estiver exatamente como está agora, você se sentirá bem com isso?’”, diz ele. “Eles sempre respondem que não, ao passo que eu pergunto: ‘E o que você está fazendo para mudar sua vida?’. É engraçado que muitos não conseguem responder, poucos admitem, baixinho, que nada. É o medo que impede as pessoas, a imagem que é mais difícil do que parece.
Medo de mudança
O medo nos faz pensar que nosso sonho é inalcançável”, afirma Alpert, que é autor do livro Vença seus Medos (Sextante). Na sociedade atual, o medo é o epicentro da nossa infelicidade, é o que está por trás de tudo o que nos mantêm paralisados. Um medo de encarar para mudar”, afirma o pesquisador. E a escritora Elizabeth Gilbert completa: “O medo é um ferro-velho abandonado onde nossos sonhos são largados para definhar sob o sol escaldante”.
A pergunta proposta por Alpert (e principalmente a resposta que as pessoas dão a ela) conclui que vivemos com mais medo do que deveríamos. Ou lidamos pior com os temores que carregamos. “Estamos, sim, mais sobrecarregados de situações estressoras”, afirma a psicóloga Bel Cesar. “Mas é importante ressaltar que o problema não está apenas na violência e em outros fatores externos, mas na fragilidade do nosso sistema nervoso em lidar com isso”, pondera.
“Medos internos, como o de não ser aceito, de abandono, da falta de recursos financeiros, de mudanças, de ter sucesso ou fracasso podem ser superados se aprendermos a reconhecê-los e a buscar recursos para lidar com eles. Como crescemos num sistema de educação basicamente intelectual, e não afetivo, aprendemos muito sobre o mundo exterior e quase nada sobre como lidar com nossas emoções”, diz. Se não tiver um sentido dado a ele, o medo pode gerar tanto raiva como tédio – e pouca coragem de agir.
Focar no importante é a solução
Em Grande Amor (Gaia), livro que Bel escreveu com o filho, o lama Michel Rinpoche, eles contam que, para evitar qualquer tipo de sofrimento, criamos um sentimento ainda mais absurdo. Padecemos muito mais pelo medo de sofrer do que pelo próprio sofrimento. “Os povos que levam uma vida mais dura aprendem que sofrer não é problema. Estão focados no que é realmente importante”, escrevem.
Por que sofrer tanto por conta de um medo se ele também determina um aspecto da sua identidade? “Uma vez fui conversar com um monge. Era começo de dezembro, tinha nevado e estava muito frio. O quarto dele ficava num lugar aberto, fechado somente por um compensado, por onde passava vento e um frio cortante. Quando perguntei se não sentia frio, o monge me olhou, como se não tivesse entendido, e respondeu: ‘No inverno faz frio!’”, conta Rinpoche.
“O peso que damos a certas coisas, como nossos medos, ocupa em nós um espaço muito grande, bem maior do que o necessário. Depois ficamos sem espaço para o que de fato tem importância, para viver as coisas que queremos e planejamos”, afirma. Eu, claustrofóbico que sou, tenho pavor de ficar sem espaço. Mas aprendi que eu caibo até no elevador com meu medo. Contanto que eu não deixe ele ficar maior do que deve…
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