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    sexta-feira, 4 de setembro de 2020

    O maior erro científico sobre a sexualidade feminina



    Em 1948, um geneticista inglês chamado Angus Bateman publicou um dos artigos científicos mais influentes já escritos sobre a evolução do comportamento sexual.
    Depois de estudar padrões de herança entre filhotes da mosca comum da fruta, Drosophila melanogaster, Bateman concluiu que a divisão entre homens “ardentes” (que procuram várias parceiras) e fêmeas “tímidas” (que procuram apenas um parceiro) era “um atributo quase universal de reprodução sexual” em todo o reino animal.
    Bateman argumentou que, porque as fêmeas produzem significativamente menos óvulos do que os homens produzem esperma, e porque os ovos são fisiologicamente mais “caros”, o sucesso reprodutivo feminino não aumentaria se a fêmea acasalasse com mais de um macho. Em vez disso, as fêmeas deveriam se concentrar em escolher o “melhor” macho que podiam e, em seguida, direcionar sua energia para manutenção da prole. Por outro lado, machos que acasalavam com várias fêmeas aumentavam grandemente o seu próprio sucesso reprodutivo.
    Qualquer semelhança com o pensamento ocidental de como homens e mulheres da espécie humana devem se comportar no sexo não é mera coincidência.
    Durante décadas, a maioria dos biólogos evolutivos basearam sua compreensão da escolha de acasalamento do sexo feminino nesse artigo. Problema: ele estava totalmente incorreto.

    Diversas outras pesquisas e evidências que vieram depois dele descobriram que as fêmeas nem sempre escolhem o “melhor macho” em vez de escolher a promiscuidade, e que a promiscuidade pode ser uma opção melhor para elas em termos reprodutivos, em determinados cenários.

    Em geral, hoje sabemos que, se a sociedade quiser dizer que é melhor para as mulheres ter um só parceiro, não pode usar a ciência como argumento a favor disso. Na verdade, a ciência está do lado de quem quiser procurar quantos parceiros estiver a fim.

    Porque Bateman estava errado

    Em junho de 2012, a bióloga Patricia Gowaty da Universidade da Califórnia em Los Angeles (EUA) e seus colegas replicaram o estudo de Bateman e descobriram que ele tirou conclusões erradas porque sua metodologia era severamente falha.
    Sem análise genética moderna à sua disposição, Bateman conduziu seus estudos com machos e fêmeas de linhagens mutantes conhecidas cujos descendentes podiam ser facilmente identificados. No entanto, ele contou apenas descendentes que tinham duas mutações – uma do pai e uma da mãe – a fim de ter certeza do sucesso reprodutivo de uma determinada mosca.
    Esta abordagem resultou em uma amostra tendenciosa, porque moscas com algumas mutações tinham menos probabilidade de sobreviver do que com outras. No final, o estudo que havia sido citado por mais de 2.000 outros artigos continha um erro grotesco facilmente identificável, que só foi descoberto depois de 64 anos.
    Mas por que demorou tanto?
    “Nossas visões de mundo restringem nossa imaginação”, disse Gowaty. “Para algumas pessoas, o resultado de Bateman era tão reconfortante que não valia a pena desafiá-lo. Acho que as pessoas apenas o aceitaram. A implicação desconfortável é que o paradigma de Bateman foi tão amplamente citado porque estava de acordo com suposições sobre como a sexualidade feminina deveria ser. Essas premissas foram construídas sobre uma longa história e havia se infiltrado na cultura ocidental de forma tão completa a ponto de ser quase invisível”.

    Sim, para elas variedade também pode ser melhor

    A primatologista Sarah Hrdy estudou fêmeas do langur-cinzento-das-planícies-do-norte, uma espécie de macaco do oeste da Índia, no final de 1970.
    Desde que Darwin fez a suposição entre os biólogos evolutivos de que as fêmeas eram tímidas e exigentes em seu comportamento sexual, enquanto os homens eram ardentes – a ideia de que elas procuram apenas um bom parceiro e eles várias parceiras –, ninguém sequer se propôs a examinar se o comportamento era mesmo verdadeiro na natureza.
    Quando Sarah observou langures fêmeas perseguindo ativamente machos de grupos que nem sequer eram os seus – elas apresentaram esses avanços sexuais em qualquer fase de seu ciclo estral, mesmo quando já estavam grávidas -, a comunidade científica ficou escandalizada.
    Os benefícios genéticos que vieram da busca de acasalamentos com múltiplos parceiros para essas fêmeas levaram por água abaixo a antiga teoria de que elas “tinham” que ser tímidas.


    Mais de 30 anos de pesquisa subsequente confirmaram as descobertas de Hrdy e revelaram que as fêmeas de muitas outras espécies de primatas, incluindo seres humanos, envolvem-se em uma diversidade de estratégias sexuais para melhorar seu sucesso reprodutivo global.
    Por exemplo, saguis solicitam sexo a vários machos que vão, todos, ajudar a cuidar de sua prole; lêmures acasalam com até sete machos durante uma única noite; macacos-prego procuram oportunidades de acasalamento nos primeiros estágios da gravidez, provavelmente para confundir os machos sobre a paternidade; bonobos fazem sexo com todo mundo e qualquer um etc.

    Cultura x ciência

    A ideia de que a mulher ou fêmea deve ter um só parceiro é totalmente cultural e nada científica.
    Em 1633, o missionário francês Paul Le Jeune escreveu do nordeste do Canadá à sua ordem jesuíta na Europa sobre as grandes dificuldades que estava tendo em converter os indígenas ao cristianismo. “A inconstância dos casamentos e a facilidade com que se divorciam uns dos outros são um grande obstáculo para a fé de Jesus Cristo”, queixou-se.
    Le Jeune considerava abominável a tendência de mulheres e homens casados de ter amantes, muitos dos quais criavam abertamente juntos os filhos. O missionário tentou dizer que não era honroso para uma mulher amar qualquer outra pessoa exceto seu marido, e que era péssimo para um pai nem saber se aquele era mesmo seu filho. A resposta que a tribo deu? “Vocês franceses amam somente seus próprios filhos; mas todos nós amamos todos os filhos de nossa tribo”.
    A literatura antropológica tem uma rica tradição de homens brancos privilegiados expressando choque e indignação com o comportamento sexual de outras culturas. No entanto, mesmo desde o início dos tempos, a monogamia de estilo ocidental nunca foi a norma. Pelo contrário – só se tornou a norma nos cantos do mundo os quais eles “conquistaram” a ferro e fogo.
    O etnógrafo americano Lewis Henry Morgan, por exemplo, escreveu em seu 1877 no seu livro “Sociedade Antiga” que um sistema de casamento flexível era comum em sociedades “primitivas” e que a “promiscuidade [era] reconhecida dentro de limites definidos”. O trabalho de Morgan era tão influente na época que Darwin foi forçado a admitir em “A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo” que “parece certo que o hábito de casamento foi gradualmente desenvolvido, e que a relação quase promíscua já foi extremamente comum em todo o mundo”.

    E o que a ciência tem a dizer sobre esse comportamento?

    Que a promiscuidade pode valer a pena para as mulheres.

    Um caso de sucesso é o estudado pela antropóloga Brooke Scelza. Nas aldeias na bacia Omuhonga do noroeste da Namíbia, mulheres casadas dos Himba, seminômades que vivem quase que exclusivamente da pecuária, casam-se cedo em uniões arranjadas, mas cometem adultério com frequência – uma atitude que não é condenada.
    Das 110 mulheres entrevistadas pela pesquisadora, um terço disse que procurou casos extraconjugais que resultaram no nascimento de pelo menos um filho. Como não há nenhum estigma social associado a estas gestações na sociedade Himba, de acordo com a análise de Scelza, “as mulheres que tiveram pelo menos um nascimento fora do casamento tiveram sucesso reprodutivo significativamente maior do que as mulheres com nenhum”.
    Essa não foi a primeira vez que o adultério foi ligado ao sucesso reprodutivo feminino. Estudos anteriores relataram evidências de infidelidade feminina nas sociedades de pequena escala, como os Kung da África do Sul, os Ekiti da Nigéria, os Vanatinai da Nova Guiné, os Tiwi do Norte da Austrália, os Tsimane da Bolívia e os Yanomami do Brasil.

    Além disso, existem sociedades na América do Sul em que “paternidades divididas” são comuns, e as crianças com mais de um pai morrem menos e são mais bem nutridas. Isso talvez não seja tão diferente da situação comum de crianças ocidentais que recebem apoio tanto seu pai biológico quanto de um padrasto atual. Essas crianças podem muito bem se beneficiar de ter dois pais.
    Enquanto uma grande diversidade de normas sexuais existe em todo o mundo, que vão desde a monogamia rigorosamente aplicada ao poliamor, de acordo com os estudos de Scelza, há dois contextos ambientais em que as mulheres geralmente escolhem parceiros múltiplos e isso é melhor para ela

    A primeira é quando as mulheres têm mais apoio material de seus parentes ou mais independência econômica. Isso pode explicar por que a poligamia é mais comum entre sociedades de pequena escala matrilocais (em que as mulheres permanecem em sua aldeia natal após o casamento), e também pode explicar por que a infidelidade feminina tem aumentado nas sociedades ocidentais conforme as mulheres ganham maior independência política e econômica.
    Sob este cenário, as mulheres escolhem parceiros múltiplos porque têm mais opções disponíveis, podem contar com uma rede de apoio durante períodos de transição, e têm maior autonomia pessoal.
    O segundo contexto ambiental identificado é quando há uma escassez de homens ou um alto nível de desemprego masculino (indicando uma escassez de homens que podem fornecer apoio). Nesses ambientes, as mulheres tendem a ter maiores taxas de gravidez na adolescência, bem como nascimentos ilegítimos. A poligamia pode ser uma maneira de “cobrir as suas apostas” em um ambiente instável. Ao perseguir uma estratégia sexual ardente, as mulheres são capazes de escolher os melhores parceiros potenciais, bem como obter o apoio de que necessitam para maximizar seu sucesso reprodutivo.

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