Na enfermaria de um hospital de Boston, os “pulmões de aço” ajudam os doentes com poliomielite a respirar durante um surto em 1955. No início do século XX, a poliomielite era uma das doenças mais temidas do mundo. Os pais aterrorizados viam os filhos atingidos e por vezes paralisados pela doença. Quando o vírus atacava os músculos responsáveis pelo controlo da respiração, o doente era colocado num “pulmão de aço”, precursor dos ventiladores. Na Primavera de 1955, foi criada uma vacina que reduziu em 99% o número de casos a nível mundial. Fotografia: Ap Photo
O que nos ensina a história? As epidemias sempre assolaram a espécie humana e as pandemias também, desde que nos espalhámos pelo globo. Ensinaram-nos lições importantes e oxalá consigamos recordá-las quando o perigo passar.
Texto: Richard Conniff
Num domingo do início de Março, quando o surto da COVID-19 já grassava por todo o planeta, a chalupa Pike, da Guarda Costeira dos EUA, soltou amarras e zarpou rumo ao navio de cruzeiros Grand Princess, que a aguardava 23 quilómetros ao largo da costa da Califórnia. Levava a bordo uma equipa de socorro médico encarregada de separar os doentes das pessoas aparentemente saudáveis, entre os 3.500 indivíduos que se encontravam no navio, e preparar o seu transporte para terra. A bordo do Pike, Michael Callahan, especialista em doenças infecciosas com décadas de experiência em surtos em todo o mundo, aguardava com a sua equipa, vomitando “sem heroísmo”, segundo as suas próprias palavras.
Pouco antes do pôr do Sol, o Pike aproximou-se de um salva-vidas arriado pelo Grand Princess. Michael e a sua equipa, ainda enjoados, encontravam-se agora também semiensurdecidos e cegos pelo equipamento de biocontenção que usavam. Um a um, saltaram primeiro para o salva-vidas e, depois, enquanto a embarcação embatia contra o casco do navio, para uma escada, trepando até ao convés para começarem o seu trabalho.
Passageiros agrupam-se no convés do Grand Princess, enquanto o navio se prepara para acostar na doca de Oakland (EUA) no dia 9 de Março. As autoridades mantiveram o navio em quarentena no mar, durante alguns dias. Por fim, mais de cem passageiros e tripulantes apresentaram resultados positivos no teste à COVID-19. Muitos membros estrangeiros da tripulação tiveram de permanecer a bordo, impossibilitados de regressar a casa devido à proibição de deslocações.
Fotografia: Gabrielle Lurie, San Francisco Chronicle via Getty Images
Fotografia: Gabrielle Lurie, San Francisco Chronicle via Getty Images
Nesse momento, o mundo inteiro estava igualmente a dar um salto para o desconhecido. Ou melhor falando, para algo que já estava esquecido. As epidemias sempre assolaram a espécie humana e as pandemias também, desde que nos espalhámos pelo globo. Ensinaram-nos lições importantes e oxalá consigamos recordá-las quando o perigo passar. As novas pandemias, como a COVID-19, têm uma maneira especial de nos lembrar a facilidade com que podemos infectar outra pessoa, sobretudo aqueles que nos são queridos. Lembram-nos como o medo do contágio nos obriga ao distanciamento. Como o isolamento pode ser devastador e como muitas vezes os doentes morrem sozinhos. Acima de tudo, a pandemia recorda-nos até que ponto dependemos de pequenos grupos de pessoas como Michael Callahan que arriscam a vida para combater as doenças. Muitas vezes, estas pessoas tiveram demasiadas fraquezas ou foram demasiado humanas para se encaixarem no tradicional perfil do herói. Em pandemias passadas, esse papel coube a indivíduos dispostos a ignorar as convenções, deixando-se guiar por pequenas pistas, aparentemente insignificantes, ou por vozes inesperadas. É também fundamental reconhecer que um acontecimento num recanto esquecido do planeta pode repetir-se aqui também. Para compreendermos o papel destes combatentes das pandemias, começamos por abordar uma das piores doenças da história da humanidade.
Da inoculação à vacinação
1721 - Boston
Em busca de uma cura
Num sermão proferido em Boston, no início de 1/21, Cotton Mather, um pastor puritano e catastrofista, Cotton Mather anunciou a vinda do ‘‘anjo destruidor’’, uma doença aterradora que se precipitaria sobre a cidade. Inglaterra já se encontrava sob cerco. O Novo Mundo sofrera vagas no passado.
Cotton Mather
Esses surtos imprevisíveis tinham causado pânico e sofrimento entre os colonos e eliminaram comunidades inteiras de nativos americanos nos 200 anos anteriores. No entanto, já tinham decorrido 19 anos desde que a última epidemia devastara Boston.
Quando as primeiras manchas vermelho-claras apareciam, acalentava-se a esperança de que fosse apenas sarampo. Depois, as manchas transformavam-se em inchaços, cheios de líquido, e cresciam sobre a pele como ilhas vulcânicas. Às centenas, poderiam obstruir os olhos e as vias respiratórias, transformando a respiração num sofrimento agonizante. As pústulas libertavam um fedor a carne podre. Os sobreviventes ficavam frequentemente cegos, aleijados ou gravemente desfigurados. Um médico que tratava uma mulher britânica recebeu a seguinte instrução: “Conserve-lhe a beleza ou tire-lhe a vida.” Em Abril, a varíola infiltrou-se silenciosamente no porto de Boston.
A princípio, o surto foi ignorado, à semelhança do que acontece hoje. No entanto, a partir de 1721, a varíola ensinou ao Ocidente uma importante lição: os seres humanos são capazes de prevenir as doenças pandémicas. Conseguimos confiná-las e, se houver vontade, por vezes até as erradicamos. Nesse ano, três heróis improváveis encabeçaram o combate em Boston. Um deles era um escravo nascido em África, Onésimo. O outro era um médico e cirurgião inovador chamado Zabdiel Boylston. O mais improvável de todos, porém, era o próprio Cotton Mather, uma personagem perturbada, vaidosa, emocionalmente instável e, ainda por cima, amplamente detestado por ter sido a força maléfica por detrás dos julgamentos das bruxas de Salem, 29 anos antes.
A partir de 1721, a varíola ensinou ao Ocidente uma lição: os seres humanos conseguem prevenir doenças pandémicas. Conseguimos confiná-las e, se houver vontade, por vezes até as erradicamos.
Mather fora um estudante atento de ciências e de medicina e não há dúvidas de que esse estudo também se tornara pessoal: duas das suas esposas e 13 dos seus 15 filhos morreram antes dele, muitos dos quais com doenças infecciosas. Por isso, ele lia revistas científicas britânicas e estudava a farmacopeia dos nativos americanos. E prestou atenção quando o seu “criado” Onésimo lhe falou num método de prevenção da varíola em África.
Quando o surto começou a propagar-se, Cotton Mather alertou os médicos de Boston para a existência de uma “maravilhosa prática ultimamente utilizada em várias partes do mundo” para o deter. A técnica consistia em perfurar uma das pústulas já amadurecidas de um doente com varíola para extrair o pus ou “matéria variólica”. Uma porção deste material era então introduzida numa incisão feita na pele de uma pessoa saudável. A ideia da “variolização”, ou inoculação, era gerar imunidade, através da qual o indivíduo passaria, provavelmente, a ser um caso meramente ligeiro de uma das doenças mais letais do planeta.
Um professor de dermatologia de Ohio documentou as cicatrizes de um sobrevivente de varíola em 1902. Embora a vacina já existisse há 100 anos, surtos da doença continuaram a ocorrer nos EUA até 1949. Fotografia: Centro Dittrick de História de Medicina, Universidade Case da Reserva Ocidental
Cotton Mather encontrou testemunhos e cicatrizes corroboradores deste método “num número considerável” de outros habitantes de Boston nascidos em África. Zabdiel Boylston conhecia o terror da varíola, pois quase sucumbira à doença 19 anos antes e sentia-se preocupado com a possibilidade de o seu consultório médico pôr “diariamente em perigo de vida” os seus oito filhos. No dia 26 de Junho, depois de reflectir sobre as provas, realizou as primeiras variolizações, no seu filho de 6 anos e em dois escravos da família. O resultado foi uma “varíola benigna e favorável”. Depois, começou então a inocular os pacientes que procuravam protecção contra a doença na sua variante mais grave.
A princípio, alguns habitantes da cidade consideravam o tratamento tão aterrador como a própria doença. Temiam que os pacientes variolizados ainda não plenamente restabelecidos fossem contagiosos. Os médicos opuseram-se ao tratamento, pois este contrariava a ortodoxia médica que defendera, durante dois mil anos, que a doença resultava de um desequilíbrio de quatro “humores” orgânicos, muitas vezes causado por maus odores e por “miasmas” mal definidos, ou maus ares.
Por fim, quando a epidemia terminou, quase seis mil pessoas (correspondendo a mais de metade dos habitantes de Boston) tinham sido afectadas pela varíola e 844 morreram. Em contrapartida, só morreram 2% das pessoas submetidas a variolização. Aperfeiçoamentos entretanto desenvolvidos permitiram a redução dessa percentagem para menos de 0,5%, transformando a variolização num método instituído. Quando a epidemia seguinte de varíola atingiu Boston, em 1792, a reacção inverteu-se: cerca de 9.200 habitantes foram inoculados e apenas 232 padeceram da varíola natural.
Nenhum dos três homens responsáveis pela introdução da variolização na América do Norte conquistou fama ou prestígio com isso. Onésimo desapareceu dos registos depois de comprar a sua liberdade. Zabdiel Boylston também foi praticamente esquecido. As ruas, edifícios e uma aldeia vizinha chamada Boylston prestam, de facto, homenagem ao seu neto, um comerciante rico. Quanto a Cotton Mather, não conseguiu reconquistar os corações da população de Boston, mas continuou a reflectir sobre questões médicas, acabando por escrever sobre a verdadeira causa de todas as epidemias: reunidas as condições favoráveis, há organismos minúsculos, que só então começavam a ser observados ao microscópio, “que rapidamente se multiplicam de forma prodigiosa e talvez tenham uma quota de responsabilidade maior do que se costuma imaginar na origem de muitas das nossas doenças”. Este manuscrito, noutros aspectos excêntrico, nunca foi publicado. A comunidade científica demorou mais 150 anos a reconhecer o decisivo papel desempenhado pelos micróbios como agentes das doenças infecciosas.
Uma ilustração de um manuscrito japonês, “A Essência da Varíola”, publicado por volta de 1720, descreve a erupção cutânea característica da doença. Desconhecem-se as origens da varíola, mas crê-se que a doença já afectava os egípcios há mais de três mil anos. Após uma campanha mundial de vacinação, a Organização Mundial da Saúde declarou-a finalmente erradicada em 1980. Imagem: Wellcome Collection, Attribution 4.0 International
O impulso dado à variolização na América do Norte e na Europa originou outro efeito inesperado. Em 1757, numa vila do Sul de Inglaterra, um “rapazinho saudável e corado”, com 8 anos de idade, foi submetido a variolização. Tratou-se de uma experiência inqualificavelmente má, uma vez que os médicos, agarrados à tradição, exigiram um regime preparatório de sangrias e purgas. Mais tarde, quando o rapaz se tornou médico de província, “prevalecia uma vaga opinião” entre os criadores de gado, escreveu, segundo a qual uma doença das vacas chamada varíola bovina talvez pudesse “prevenir a varíola”. Esta possibilidade de criar um método melhor impressionou profundamente Edward Jenner.
A população indígena diminuiu 90% no primeiro século após a chegada dos europeus. A varíola foi a principal causa de morte.
No entanto, durante décadas, ninguém pôs em prática esse tratamento empírico até que, por fim, o próprio Jenner teve a sua oportunidade. No dia 14 de Maio de 1796, procedeu àquilo que parecia ser a variolização de outro rapaz de 8 anos, chamado James Phipps, só que utilizando material retirado de uma jovem mulher infectada com varíola bovina. Era o princípio da vacinação moderna, um termo cunhado a partir de vacca, a palavra latina para vaca. Os primeiros defensores do movimento antivacinas manifestaram-se de imediato, exprimindo os seus protestos indignados. Temiam, entre outros receios, que os seres humanos desenvolvessem tendências semelhantes a vacas, contraíssem doenças do gado ou até que lhes pudessem crescer chifres. A vacinação, porém, mostrou-se mais segura e eficaz do que a variolização e não tardou a espalhar-se por todo o planeta.
Os colonos europeus trouxeram doenças do Velho Mundo para a América, devastando as populações indígenas. Quase trezentos anos mais tarde, o rei de Espanha ordenou uma missão ambiciosa destinada a combater uma das doenças mais letais: a varíola. Imagem: Riley D. Champine; Scott C. Elder Fontes: Catherine Mark e José G. Rigau-Pérez, “Bulletin Of The History Of Medicine”, 2009; Frank Fenner e outros, “Smallpox And Its Eradication”; Colin Mcevedy e Richard Jones, “Atlas Of World Population History”
Depois de Edward Jenner demonstrar, em 1796, que a inoculação com a menos virulenta varíola bovina conseguiria proteger os seres humanos contra a varíola humana, outros médicos não tardaram a aderir à causa, mas o rei de Espanha foi mais longe, ordenando uma expedição marítima destinada a disseminar a vacinação no império espanhol. (clicar no mapa para detalhes)
A Expedição Filantrópica Real de Vacinação foi a primeira iniciativa mundial de saúde pública, tendo por objectivo fundar juntas regionais em todo o império a fim de manter um stock de vacinas e supervisionar a sua utilização, formar os vacinadores e administrar a vacina a custo zero. Um médico guatemalteco com longos anos de experiência na inoculação contra a varíola ajudou a planear a expedição. Advogava a comunicação nos idiomas indígenas, a colaboração com chefes comunitários e o tratamento humanitário dos pacientes. Comandada por Francisco Xavier de Balmis, a expedição partiu em Novembro de 1803. Para superar o desafio do transporte da varíola bovina in vivo, o navio levava a bordo 22 jovens homens oriundos de orfanatos. 1 A equipa médica vacinou dois rapazes, servindo-se mais tarde das suas pústulas para injectar outros dois e assim sucessivamente ao longo da viagem de dez semanas, garantindo a disponibilidade de um stock de vacina viva aquando da chegada a Porto Rico. 2 No entanto, Porto Rico já recebera a vacina por outros meios. A Venezuela beneficiou com isso e comemorou a sua chegada com fogo-de-artifício, concertos e uma missa de acção de graças. 3 A expedição principal foi introduzir a vacina em Cuba, no México e na América Central. Os órfãos espanhóis foram adoptados por famílias mexicanas e 26 rapazes mexicanos substituíram-nos na travessia do Pacífico. 4 O cirurgião da expedição, José Salvany, encaminhou-se então para sul, rumo a outra etapa da missão humanitária, que envolveu vários anos de incómodos e perigos. O seu contingente transportou a vacina por terra, ao longo de uma rota de quatro mil quilómetros até ao Pacífico, partindo da actual Colômbia e dirigindo-se ao Equador, ao Peru e à Bolívia. 5 José Salvany e as suas equipas vacinaram mais de duzentas mil pessoas na América do Sul. O cirurgião morreu na Bolívia em 1810, com apenas 36 anos, aparentemente devido a doença cardíaca. 6 A expedição principal prosseguiu até às Filipinas. Francisco Balmis separou-se e rumou à China. 7 A viagem de circum-navegação terminou em 1806, com o seu regresso a Espanha, mas Balmis manteve-se dedicado à causa, desenvolvendo esforços no sentido de disseminar a vacinação nos territórios ultramarinos castelhanos até 1813.
Os investigadores contemporâneos caracterizam por vezes estas iniciativas médicas como dispositivos oportunistas para promover empreendimentos coloniais e controlar as populações indígenas. Nessa época, porém, toda a população, começando na própria família real, compreendia o profundo terror da varíola. Arriscando a vida pela causa da vacinação, o pessoal médico desta campanha actuou com o empenho genuíno de quem queria derrotar a terrível doença.
A varíola continuou a matar, calculando-se que, só no século XX, tenham morrido 300 milhões de pessoas. Em Maio de 1980, a Organização Mundial da Saúde declarou a varíola erradicada, graças a uma empenhada campanha mundial de vacinação. Por essa época, já a vacina de Jenner se tornara um modelo para muitas outras. As vacinas afastaram tantas doenças infecciosas das nossas vidas que, durante um breve e feliz interlúdio, chegou-se a pensar que nunca mais haveria algo semelhante a uma pandemia.
Peste
A terceira pandemia de peste começou na China em 1855 e chegou a todos os continentes, menos a Antárctida, entre 1894 e 1900. A bactéria alcançou Madagáscar em 1898 e ainda existe hoje. Durante a década de 1990, os investigadores descobriram em Madagáscar uma nova estirpe da peste, resistente aos fármacos.
Uma equipa de socorristas deposita uma vítima da peste num caixão em Madagáscar, em 1935.Alguns médicos associaram a tradição malgaxe da famadihana à disseminação da doença. Praticado sobretudo nas terras altas da ilha, o ritual exige que os enlutados exumem os cadáveres, os limpem, voltem a enfaixar e dancem com eles, antes de os enterrarem de novo. Apesar dos esforços para dissuadir a famadihana, alguns novos casos da peste em Madagáscar foram associados a cerimónias de re-sepultamento. Fotografia: Instituto Pasteur
Escala do sofrimento. A doença tem ditado o sofrimento, a morte e até a extinção de civilizações. Alguns agentes patogénicos causaram a sua destruição rápida, outros movimentaram-se em vagas mortíferas ao longo de várias décadas. Eis alguns dos piores surtos de todos os tempos que mudaram o curso da história. Imagem: Alberto Lucas López; Aviva Hope Rutkin Fontes: Graham Mooney, Universidade Johns Hopkins; Christian Mcmillen, Universidade da Virginia; OMS; CDC (Clique na imagem para ver detalhes)
Água e saneamento
Século XIX - Londres
A cólera muda as cidades
As comunidades humanas só se mostraram dispostas a aprender a lição perante uma das mais assustadoras doenças alguma vez registadas.
Quando o flagelo irrompeu em 181], na cidade de Jessore (no Bangladesh), a sua virulência aterrou as comunidades locais apesar de estas já conhecerem os seus horrores devido a surtos do passado.
“O ataque foi de tal maneira imprevisto e devastador” que os moradores aterrados “fugiram em hordas para o campo, como único meio de escaparem à morte iminente”, escreveu um funcionário local. Em poucas semanas, dez mil pessoas morreram neste distrito.
O crescimento explosivo transportou o novo surto por terra e através do oceano, tornando-o pandémico. Os leitores dos jornais acompanhavam os relatos da linha da frente à medida que a doença se aproximava lentamente. E não era só por ela matar metade das suas vítimas ou por fazê-lo com uma rapidez assustadora. Havia um terror especial pelas próprias circunstâncias da morte: num dado momento, um indivíduo parecia estar na flor da vida e, no momento seguinte, liquefazia-se e desfazia-se em vómitos e diarreia. Depois, vinha uma sede intensa. Espasmos e cãibras contorciam-lhe os músculos. A respiração transformava-se numa desesperada “fome de ar”, arquejante. As vítimas morriam com o juízo aparentemente intacto, de olhar fixo, com o líquido aquoso ainda contorcendo os seus intestinos.
Cadáveres de vítimas de cólera jazem à porta de um hospital na República Democrática do Congo em Julho de 1QQ¢. Em menos de uma semana, quase um milhão de refugiados em fuga do Ruanda, devido à vaga genocida ali registada, atravessaram a fronteira perto de Goma. A multidão sobrecarregou os campos de refugiados e os seus serviços sanitários, permitindo que a doença se propagasse e causasse a morte de 50 mil pessoas. Fotografia: Teun Voeten, Panos Pictures
Quando se debatia a causa desta nova ameaça, os miasmas e os maus odores eram apontados como os suspeitos do costume. Quase todos os primeiros reformadores do sistema sanitário preocupavam-se obsessivamente com os maus cheiros, em parte porque eles estavam presentes em todo o lado – os odores acres das fábricas, os chiqueiros de porcos encostados às casas, as toneladas de estrume de cavalo e outros animais, as fábricas de curtumes, as sepulturas superficiais dos mortos e, evidentemente, os excrementos humanos despejados por toda a parte. Para o movimento sanitário, “as exalações pútridas” eram a causa da doença.
No século XIX, à medida que as populações abandonavam o campo e acorriam às cidades, fazendo fila à porta das fábricas em busca de emprego, a humanidade ainda precisava desesperadamente de aprender como viver junta sem morrer. As famílias amontoadas em bairros de lata miseráveis faziam circular a febre tifóide, a disenteria, a tuberculose, a cólera e outras doenças infecciosas.
O grande professor das reformas sanitárias foi um funcionário público britânico da época de Charles Dickens, chamado Edwin Chadwick. Alto e de rosto redondo, com madeixas de cabelo oleoso penteadas de modo a cobrirem-lhe a cabeça calva, tinha olhos com pálpebras pesadas que olhavam o mundo com uma expressão crítica, senão mesmo desdenhosa. Conquistara também a reputação de conhecer os factos de qualquer problema que estudasse, contribuindo com uma admirável energia para a sua solução.
Edwin Chadwick
Em 1842, Edwin Chadwick escreveu um livro, publicado pelo governo britânico, e hoje conhecido como “O Relatório Sanitário”. Baseando-se em relatos recebidos de toda a Grã-Bretanha, descrevia com frieza pormenorizada o mundo da classe operária urbana, que deve ter parecido tão estranho aos leitores mais instruídos desse tempo como a própria cidade de Jessore. Chadwick conduz o leitor a caves com um metro de altura de resíduos humanos provenientes das fossas sépticas atulhadas, onde “todos os artigos de comer e de beber tinham de ser cobertos” para evitar “o sabor intenso a estrume” transportado pelas moscas. Descreveu uma cidade onde “as imundícies” de uma penitenciária com 65 prisioneiros “são despejadas nas ruas, com dois ou três dias de intervalo”, misturadas com o sangue que escorre do matadouro local.
Chadwick era um adepto da “teoria da sujidade” e do poder mortífero dos fedores. Felizmente, as suas recomendações pormenorizadas também ajudaram a combater as causas verdadeiras das doenças. O horror visceral causado por “O Relatório Sanitário” incitou os políticos relutantes a reagir. Em 1848, o governo britânico criou uma das primeiras autoridades nacionais de saúde pública do mundo, chefiada por Chadwick. No ano seguinte, um surto de cólera deu um impulso inesperado à reforma sanitária. Pouco depois, Chadwick lançou uma campanha nacional que pressionava as cidades e vilas a construírem sistemas públicos centralizados de abastecimento de água potável às residências, bem como uma rede de esgotos adequadamente projectada para transportar os resíduos.
Tratou-se de um empreendimento com custos enormes, mas originou melhorias extraordinárias da saúde e da esperança de vida. Outros países seguiram o exemplo e, pela primeira vez, as cidades ganharam condições de vida aceitáveis. A mudança do campo para a cidade começou com a revolução industrial, mas a espécie humana só se tornou predominantemente urbana em 2008. Segundo estimativas da ONU, 68% dos seres humanos viverão em áreas urbanas até meados do século XXI. Isto significa que muitas sociedades precisam de aprender que a mudança do campo para a cidade altera tudo. Precisam também de sistemas que lhes permitam fazer a transição em segurança, mas muitos países menos desenvolvidos não dispõem de dinheiro suficiente para financiar reformas sanitárias.
Em 1849, a recém-criada Direcção-Geral da Saúde da Grã-Bretanha publicou um “Mapa da Cólera na Metrópole”, apresentando a distribuição da doença em Londres. O mapa mostra as zonas da cidade com maior taxa de mortalidade a azul-escuro e identifica outras com “Água envenenada”, “Esgoto a céu aberto” e “Excesso de população”, factores que favoreceram a disseminação da infecção. Imagem: Wellcome Collection, Attribution 4.0 International
Actualmente, 2.100 milhões de pessoas não têm acesso a um abastecimento de água seguro em casa e 4.500 milhões de habitantes do planeta não beneficiam de um sistema de saneamento básico gerido com segurança. A inexistência de ambos foi o principal factor responsável pela recente epidemia de cólera no Haiti, que causou dez mil mortos em nove anos. Outras vítimas vivem em cidades de crescimento acelerado na Ásia, em África e na América Latina, que padecem de doenças antigas como pneumonia, diarreia infantil e tuberculose e doenças relativamente recentes como o VIH/Sida.
A circunstância mais sinistra é que muitas dessas cidades gigantescas se situam perto de regiões com grande diversidade de vida selvagem, com um abundante acervo de potenciais novos agentes patogénicos capazes de darem o salto para os seres humanos. Eis a receita perfeita para a eclosão de novas pandemias. Talvez a devastação causada pela COVID-19, à semelhança da cólera na Londres de Chadwick, se torne o factor que incentivará os governos a introduzir reformas sanitárias como medida destinada a impedir que outras pandemias venham a acontecer.
A teoria da sujidade
Na sequência de uma vitória contra os franceses, em 1743, cerca de 1.500 soldados britânicos, sem ferimentos, mas mortalmente doentes, arrastaram-se até ao hospital geral do exército numa aldeia dos arredores de Frankfurt, na Alemanha. Dois ou mais homens jaziam sobre cada cama, amontoando-se também sobre o chão. A maioria dos doentes padecia de disenteria e a enfermaria encontrava-se inevitavelmente coberta de excrementos, urina, sangue, suor e vomitado. As pulgas e os piolhos abundavam. Pouco depois, a disenteria deu lugar ao tifo. Centenas de homens morreram.
John Pringle, médico militar na sua primeira campanha, observava horrorizado os moribundos. As ideias que desenvolveu mais tarde para prevenir as doenças foram uma das primeiras expressões da teoria da sujidade. Resumidamente, ele defendia que um ambiente sujo favorece as doenças e que o saneamento contribui para a sua prevenção.
John Pringle
Nascido em 1707, John era o filho mais novo de uma família oriunda da pequena aristocracia escocesa. Conquistou o respeito como professor na Universidade de Edimburgo, ensinando moral e filosofia natural, disciplinas que significavam aprender coisas com o mundo vivo através da experimentação, da observação e do raciocínio indutivo. Quando a guerra da sucessão austríaca começou, ele foi nomeado médico-geral das forças britânicas que incluíam 16 mil homens.
Segundo a estimativa de John Pringle, o exército britânico perdeu um quarto dos seus homens devido à doença durante a campanha de 1743. O médico decidiu inverter a situação, desenvolvendo esforços junto do comando militar para transformar os seus conhecimentos em ordens de serviço. Ao instalarem os acampamentos militares, os intendentes recebiam instruções para evitarem zonas húmidas e mal ventiladas e para escavarem latrinas adequadas com antecedência.
Setenta e cinco por cento das mortes ocorridas entre os soldados de Napoleão em 1812 foram causadas pelo tifo.
Os hospitais eram o outro inimigo dos soldados. John Pringle reparou que os homens tratados no acampamento militar normalmente evitavam a febre hospitalar, como então se chamava ao tifo. Tornou-se então norma mantê-los no acampamento, sempre que possível. Nos hospitais, o espaço reservado aos doentes deveria ser limpo e bem ventilado, com uma área mínima de três metros quadrados para cada homem.
A roupa de cama deveria ser mudada com frequência.
No hospital geral, a mortalidade diminuiu mais de metade: de 21,4% em 1743 para 9,8% nos dois anos de guerra seguintes.
Em 1752, Pringle publicou o livro "Observações sobre as Doenças do Exército”, objecto de numerosas edições nas duas décadas seguintes, levando o seu evangelho sanitário a todas as forças armadas britânicas. Ao reconhecerem o sucesso da teoria da sujidade na limpeza das forças armadas, os pioneiros da saúde pública em breve iniciaram uma guerra à imundície noutro campo: nas cidades da revolução industrial.
Vírus altamente infeccioso que afecta mais as crianças, a poliomielite foi erradicada de grande parte do planeta graças a uma campanha de vacinação. No entanto, ainda subsiste em algumas regiões da Ásia e de África. Antes da generalização da vacina, a poliomielite paralisou mais de 15 mil pessoas por ano nos Estados Unidos.
Os micróbios causam doenças
Finais do século XIX - Europa
A teoria microbiana altera tudo
Durante 200 anos, foram apresentadas versões da ideia segundo a qual as doenças eram causadas por “animálculos” ou germes. Durante algum tempo, os promotores da medicina humoral e da teoria da sujidade silenciaram essas vozes.
No século XIX, porém, à medida que os microscópios se tornavam mais eficazes e mais generalizadamente disponíveis, outros investigadores começaram a vislumbrar o mundo dos microrganismos. A ideia de que microrganismos específicos podiam causar doenças infecciosas específicas foi-se tornando mais convincente.
Hoje em dia, a história tende a homenagear dois homens, Louis Pasteur e Robert Koch, como pais da teoria microbiana, esquecendo-se dos pioneiros cujo trabalho eles utilizaram. No entanto, Pasteur e Koch foram mestres da ciência experimental, meticulosos no método, e geniais na escolha do percurso certo que conduz de uma experiência à seguinte. Detestavam-se mutuamente, como rivais no mesmo domínio de descoberta e também como patriotas em tempo de guerra entre os seus dois países, a França e a Alemanha. Mas os seus avanços decisivos transportaram a humanidade para o mundo novo e milagroso da teoria microbiana.
Robert Koch
Pasteur era um químico, não um médico, e a sua perspectiva exógena revelou-se útil na superação das crenças médicas convencionais. Um dos estudos que conduziu na década de 1850 começou com um objectivo prático: pretendia ajudar um fabricante local a identificar a causa de um sabor desagradável em certos lotes de álcool de beterraba. Pasteur descobriu rapidamente o culpado, um determinado tipo de bactérias, e recomendou que o sumo de beterraba fosse aquecido para impedir que esse sabor surgisse de novo. Terá sido o início da pasteurização.
Pasteur analisou em pormenor cada etapa da fermentação. Não se tratava de um processo puramente químico, ao contrário do que muitos pensadores “modernos” acreditavam então, mas sim de um processo biológico: a levedura, um organismo vivo, consumia os nutrientes presentes na infusão, transformando-os em álcool e outros produtos. O trabalho sobre a fermentação incentivou Pasteur a ver microrganismos em toda a parte e a demonstrar que eles resultavam da reprodução biológica e não de geração espontânea. Prosseguindo o seu trabalho, deu um extraordinário salto intuitivo: tal como causavam a fermentação, os minúsculos seres vivos poderiam também provocar doenças infecciosas.
Louis Pasteur autopromovia-se de forma entusiástica. Apresentava as suas descobertas numa linguagem arrojada e angariava apoios para o seu trabalho entre a elite francesa.
Em finais do século XIX, o fotógrafo Andrew Pringle usou um microscópio para captar imagens dos bacilos da tuberculose, carbúnculo e outras bactérias. Imagem: Colecção Wellcome, Attribution 4.0 International
Mas seria Robert Koch, na altura médico de província, trabalhando sozinho num laboratório caseiro, a comprovar que a magnífica intuição de Pasteur estava correcta.
Talvez os sentimentos antigermânicos do século XX tenham afastado Koch da mitologia da ciência médica. Koch também perdeu admiradores quando se divorciou da mulher para se casar com uma lindíssima actriz e, aproximadamente na mesma época, prometeu, sem sucesso, descobrir uma cura para a tuberculose.
Koch, no entanto, merece mais. Em meados da década de 1870, quando ainda era um jovem médico e trabalhava numa zona rural do actual território da Polónia, reservou parte da sua sala de exames para instalar um pequeno laboratório. Ali, no meio dos doentes, estudava os espécimes microscópicos do mundo natural, incluindo o sangue de uma ovelha que morrera de carbúnculo. Através de uma análise paciente, foi desvendando um mistério desconhecido desta doença veterinária, que por vezes também mata seres humanos.
As ossadas de 30 mil vítimas da peste, mortas durante um surto do século XIV, adornam o ossário de Sedlec, na República Checa. Fotografia: Charlie Hamilton James
As bactérias reproduzem-se normalmente, dividindo-se em duas. Em condições favoráveis, a duplicação sucessiva de um agente patogénico como o carbúnculo pode fazer claudicar o animal hospedeiro. O que ninguém sabia antes de Koch é que, quando as condições se tornam adversas, as bactérias do carbúnculo também podem produzir uma estrutura de sobrevivência. Este esporo, encapsulado num revestimento duro, consegue sobreviver no solo em estado latente durante gerações, como se fosse uma mina terrestre biológica. Isso sugeriu uma resposta para o facto de o carbúnculo por vezes surgir do nada, quando nenhum animal novo é introduzido num rebanho e sem que qualquer caso da doença tenha ocorrido durante anos ou décadas. Koch não tardou a inventar um método de cultivar artificialmente as bactérias, sobre um pedaço de vidro que podia examinar ao microscópio. Ali observou a eclosão dos esporos e viu-os transformarem-se de novo em bactérias vivas, que subsequentemente produziram uma segunda geração de esporos. Para demonstrar que os esporos eram capazes de infectar animais após um período de latência, Koch injectou-os em ratos selvagens (não existiam ainda ratos de laboratório), dando rapidamente origem a uma nova e mortífera população de bactérias de carbúnculo.
Pasteur e Koch detestavam-se mutuamente como rivais e patriotas em tempo de guerra. Os seus avanços transportaram a humanidade para o mundo milagroso da teoria microbiana.
O artigo publicado por Koch sobre a bactéria do carbúnculo, em Outubro de 1876, foi um ponto de viragem na história da humanidade.
Ao produzir, repetida e previsivelmente, os sintomas do carbúnculo em animais experimentais, ele provou a realidade há muito contestada do contágio e provou que o Bacillus anthracis era o agente responsável por esse contágio. Numa frase, Koch demonstrara a teoria microbiana da doença.
Pasteur e Koch aproveitaram inevitavelmente o trabalho um do outro, ao mesmo tempo que se atacavam em público. Pasteur concebeu as primeiras novas vacinas desde que Jenner criara a vacina contra a varíola, 85 anos antes, incluindo as vacinas contra o carbúnculo e contra a raiva. Koch não curou quaisquer doenças, mas identificou os agentes patogénicos responsáveis por algumas das mais terríveis doenças conhecidas pela humanidade, como a cólera e a tuberculose e esse trabalho valeu-lhe a atribuição do Prémio Nobel em 1905. Também tornou muitas curas possíveis, ao inventar ferramentas microbiológicas que outros cientistas ainda utilizam para identificar uma espantosa galeria de vilões constituída por agentes patogénicos mortíferos. Pela primeira vez, o tratamento e a prevenção específicos de quase todas as doenças infecciosas tornaram-se possíveis.
Com o mundo mergulhado na guerra, o impulso para desenvolver fármacos anti-infecciosos e para tratar os feridos assumiu uma nova urgência, conduzindo à produção em massa da penicilina, o primeiro antibiótico eficaz.
Gravemente doente, Albert Alexander, um agente da polícia de meia-idade, estava internado numa enfermaria na cidade de Oxford, em Inglaterra. Tudo começara com o arranhão de um espinho na cara, enquanto tratava do seu roseiral. Agora, porém, perdera um olho e escorria pus por todo o lado devido a sépsis, uma reacção grave e potencialmente mortal à infecção.
Howard Florey
No dia 12 de Fevereiro de 1941, Alexander tornou-se o primeiro doente a receber o tratamento, na esperança de que este o curasse. As melhoras foram rápidas, mas o fármaco era tão difícil de produzir que os investigadores se viram obrigados a reciclá-lo cuidadosamente a partir da sua urina para, de seguida, o reinjectarem. Quando o fármaco se esgotou, Alexander morreu.
Anos mais tarde, quando a penicilina se tornou o remédio-maravilha do século, a comunicação social aclamaria Alexander Fleming, o microbiólogo que descreveu pela primeira vez o poder antibacteriano do bolor Penicillium e cunhou o nome “penicilina” num artigo de investigação publicado em 1929 que passou praticamente despercebido. No entanto, foi o longo esforço da equipa de Oxford que acabou por transformar a penicilina de curiosidade laboratorial num antibiótico prático. O esforço foi desenvolvido à sombra do conflito. A Segunda Guerra Mundial gerara pressões intensas no sentido de disponibilizar grandes quantidades daquilo que prometia ser um salva-vidas para os soldados feridos em combate. Mas o bolor Penicillium só se desenvolvia numa película fina sobre um meio de cultivo e as necessidades da guerra exigiam, só para um primeiro fornecimento, quase 40 mil litros.
2,3 milhões de doses de penicilina foram fabricadas no âmbito dos preparativos para o desembarque do Dia D.
O momento de viragem deu-se em Julho de 1941, quando o Instituto Rockefeller, juntamente com funcionários públicos britânicos e norte-americanos, conseguiram reservar bilhetes de avião para que Howard Florey e o bioquímico Norman Heatley, de Oxford, visitassem o instituto em Nova Iorque. Pouco depois, viajaram para o Laboratório de Pesquisa Regional do Norte, em Peoria, onde fora fixado o ambicioso objectivo de cultivar a penicilina em enormes cubas de fermentação. A milhocina, um subproduto vulgarmente disponível na região de cultivo do milho, revelou-se o nutriente ideal para produzir a penicilina a baixo custo. E uma estirpe do bolor Penicillium descoberta num melão podre no mercado de Peoria provou ser a mais adequada para o produzir em cubas de fermentação profunda. Em Março de 1944, a Charles Pfizer and Company começou a produzir uma enorme quantidade de penicilina numa antiga fábrica de gelo. No dia 6 de Junho de 1944, os soldados aliados traziam consigo o antibiótico ao desembarcarem nas praias da Normandia e ao fazerem a travessia de França.
Ébola
Desde 1976, ano do primeiro surto no Sudão e imediações do rio Ébola, no actual território da República Democrática do Congo, que o vírus do ébola tem reaparecido periodicamente na África Central e Ocidental. Transmitido através do contacto com fluidos corporais, o ébola provoca hemorragia e insuficiência dos órgãos. Mata cerca de metade das pessoas infectadas.
Pessoas enlutadas carregam o caixão de Liliane Kapinga Ebambe, uma menina de 3 anos que morreu de ébola em Julho de 2019 em Beni, no Leste da República Democrática do Congo. Apesar das campanhas de vacinação, o vírus tem persistido aqui, em parte devido à falta de confiança nos funcionários do sistema de saúde, à má informação generalizada e aos conflitos violentos. Os pais de Liliane acreditam que a sua filha foi envenenada e que o ébola é uma conspiração urdida por outros países para eliminar o povo congolês. Fotografia: Marco Gualazzini, Contrasto/Redux
Actualidade
Quando o especialista em doenças infecciosas Michael Callahan subiu a bordo do Grand Princess, a pandemia da COVID-19 já era uma velha conhecida. Michael começara a trabalhar em Janeiro, trocando opiniões sobre o agente patogénico que então emergia na cidade de Wuhan com os colegas da sua pequena rede de especialistas. Observou doentes em Singapura, quando a doença eclodiu na região, e informou a administração norte-americana em Washington sobre os locais onde ela poderia surgir em seguida. Ajudou a evacuar um navio de cruzeiros em Yokohama, no Japão, e depois tratou algumas vítimas numa fase precoce da propagação da doença em Boston, onde é médico do quadro do Massachusetts General Hospital.
Máscaras N95 são descontaminadas dentro de um novo sistema que permite a reutilização segura de artigos de utilização única. Desenvolvido pela organização sem fins lucrativos Battelle, na cidade de Columbus (EUA), o sistema aplica peróxido de hidrogénio vaporizado, num processo que pode ser repetido 20 vezes em cada máscara N95. Já está a ser utilizado em dezenas de Estados. Fotografia: Brian Kaiser, New York Times / Redux
Enquanto observava, trabalhava e participava em discussões sobre problemas dos ventiladores, viu a doença revelar a sua “magnífica infectividade”, a sua capacidade para se instalar “como uma pequena bomba silenciosa e inteligente no meio de uma comunidade”, até descobrir uma pessoa “e eliminá-la”.
“Quando vi o meu paciente número 500, fiquei aterrorizado”, afirma Michael Callahan. “É uma doença latente.”
Há décadas que Michael é um rosto familiar nas frentes de combate às epidemias em todo o mundo, tendo participado na eliminação dos surtos de ébola, SARS, H5N1 e uma mortífera sopa de letras de outras doenças. Encaixa-se perfeitamente na sua própria descrição dos especialistas que aparecem nas frentes de combate aos novos surtos: “Gente nervosa, com passada rápida e exprimindo-se em frases curtas e entrecortadas.”
Entrámos num assustador mundo novo. Ou talvez estejamos a regressar ao velho mundo dos nossos antepassados assolados pela peste. Seja como for, a lição é não nos esquecermos de que isto aconteceu.
No entanto, mesmo entre os seus colegas altamente capacitados e hipermotivados, Michael Callahan destaca-se pela sua capacidade para sintetizar informação no meio de uma crise e propor rapidamente a melhor opção disponível. Por essa razão, está na lista de contactos de marcação rápida de um grande número de organizações, desde hospitais a organizações mundiais sem fins lucrativos. De vez em quando, também vai a casa.
Michael Callahan escolheu a sua carreira devido à brutal experiência vivida nos campos de refugiados do Leste da República Democrática do Congo em finais da década de 1990, que lhe ensinou que, no mundo menos desenvolvido, as doenças infecciosas são uma “catástrofe sempre em marcha. E incessante. Senti-me muito motivado pela injustiça de tudo aquilo”. A sua experiência posterior com o ébola e outros surtos na África Ocidental ensinou-lhe que tratar um caso de cada vez não é suficiente. Em contrapartida, a formação e a disponibilização de recursos ao pessoal médico local “produz enormes mudanças numa aldeia, numa comunidade ou num hospital. E essas mudanças perduram depois de sairmos.”
Essa passou a ser a sua filosofia orientadora. Colaborando num programa dirigido pelo Departamento de Estado dos EUA, ajudou antigos médicos e cientistas dos programas soviéticos de armamento químico e biológico a transformarem-se em investigadores de doenças infecciosas em tempos de paz. Isso levou-o a trabalhar durante uma década na DARPA (Agência para os Projectos de Investigação Avançada em Defesa do Pentágono), onde desenvolveu um programa denominado Prophecy, destinado a prever e travar doenças emergentes.
Um caixão contendo o cadáver de um estrangeiro que morreu durante a pandemia da COVID-1Q encontra-se numa morgue de Milão até poder ser enviado para o seu país. As morgues na Lombardia ficaram de tal maneira sobrelotadas que os corpos tiveram de ser enviados para outras regiões, onde foram cremados. As autoridades italianas proibiram os funerais em todo o país, obrigando as famílias a fazerem o luto pelos seus entes queridos em casa. Fotografia: Gabriele Galimberti
Os antecedentes de Michael Callahan dotaram-no de uma visão invulgar para a melhor maneira de nos adaptarmos à COVID-19 e a outras doenças emergentes que surgirão no futuro. A protecção da nossa saúde, segundo ele, poderá depender de descobrirmos maneiras de ajudar outros países a satisfazerem as suas próprias necessidades, mesmo que os respectivos governos nacionais sejam abertamente hostis e que essas necessidades nem sempre pareçam servir os próprios interesses nacionais de curto prazo. Precisamos de uma visão de longo prazo.
Na Indonésia, por exemplo, a sobrepesca dizimou as populações costeiras de produtos do mar e o direito islâmico proíbe a ingestão de carne de porco. Isso obriga a garantir um abastecimento seguro de proteína, sobretudo depois de um surto de gripe das aves ter causado enormes prejuízos à avicultura. Por isso, no início, o programa Prophecy concentrou-se discretamente na protecção dos stocks de galinhas. Entre outras medidas, forneceu à Indonésia competências de sequenciação genética a nível local, que lhe permitiram identificar os agentes patogénicos, reduzindo a sua dependência face às potências ocidentais.
Na Indonésia “o nosso capital aumentou e conseguimos aceder aos domínios importantes”, ou seja, à vigilância dos agentes patogénicos humanos. “A DARPA, normalmente considerada uma agência militar secretista, foi um parceiro bem-vindo.”
O corpo de uma vítima suspeita de morte por covid-19 jaz num hospital da Indonésia. Depois de o doente morrer, os enfermeiros envolveram o corpo em várias camadas de plástico e aplicaram desinfectante para impedir a propagação do vírus. Fotografia: Joshua Irwandi
Outra estratégia importante do Prophecy consistiu em identificar, nos países menos desenvolvidos, médicos jovens e inteligentes especializados em doenças infecciosas e criar vínculos de longa duração. Isso poderá implicar fornecer-lhes novas tecnologias, trazê-los para faculdades de medicina dos EUA para lhes dar formação complementar ou conceder-lhes bolsas para novas investigações.
“Ao promoverem o seu parceiro estrangeiro, promovem-se também a si próprios, tornando-se líderes no seu domínio, e isso tem duas vantagens: obtêm financiamento sustentável no seu próprio país e nós asseguramos um emissário muito grato que se encontra agora no topo dos… serviços secretos de informação sobre agentes patogénicos”, diz Michael Callahan.
Um desses parceiros estrangeiros foi um investigador na Rússia que Callahan ajudou a fazer a transição das armas biológicas para a detecção de doenças epidémicas. Em 2005, o laboratório desse investigador localizou um surto de H5N1, uma gripe aviária capaz de devastar as aves de criação e as aves selvagens. Também consegue dar o salto para os humanos e matar os jovens, destruindo-lhes os pulmões. A doença estava a deslocar-se para nordeste, para a região onde as rotas aéreas asiáticas e americanas se sobrepõem, na zona do estreito de Bering. O alerta precoce permitiu que os cientistas dos EUA iniciassem um importante programa de testes a aves migratórias no Alasca, impedindo a entrada da doença no continente.
O programa Prophecy chegou ao fim alguns anos depois de Callahan concluir o seu trabalho na DARPA. A principal tendência entre os governos de todo o mundo tem sido desvalorizar o risco das pandemias e subfinanciar os programas concebidos para preveni-las. Assim, no passado mês de Outubro, a administração federal dos EUA permitiu que o Predict, outro programa focado em doenças emergentes, fosse terminado. Menos de um mês mais tarde, registou-se o primeiro caso conhecido da COVID-19 na China. E pouco depois as vítimas norte-americanas começaram a engrossar as fileiras dos mortos a nível mundial.
A actual pandemia irá aumentar os esforços para prever e controlar as doenças pandémicas, pelo menos durante algum tempo. Mas ninguém sabe ainda que forma deverá assumir a prevenção, quanto custará, nem como as economias destruídas irão pagá-la.
Trabalhadores do sector automóvel almoçam numa fábrica de Wuhan, na China. Têm de usar máscara, sujeitar-se a medições regulares da temperatura e manter distâncias seguras entre si. Fotografia: STR / AFP via Getty Images
Irão os países participar no longo jogo da cooperação internacional? Ou irá acentuar-se a tendência para a defesa dos interesses nacionais de curto prazo? Será que uma sociedade que pouco discutiu o dispêndio de 11,5 mil milhões de euros num porta-aviões, maioritariamente ao serviço da prevenção de conflitos armados, estará também disposta a incorrer em despesas ainda maiores para prevenir as doenças epidémicas? Este tipo de prevenção não assegura nenhum rendimento tangível, não resulta em qualquer objecto heróico palpável, proporcionando apenas o conhecimento insatisfatório de que a catástrofe que temíamos não chegou a acontecer.
Entrámos num assustador mundo novo. Ou talvez estejamos a regressar ao velho mundo dos nossos antepassados assolados pela peste. A grande lição que devemos retirar da história é a seguinte: quando a actual pandemia acabar por se dissipar, não podemos dar-nos ao luxo de nos esquecermos de que ela aconteceu. Não podemos limitar-nos a seguir em frente. Algures no planeta, a próxima grande pandemia, o próximo anjo destruidor, já está a ganhar asas para voar.
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